Como define a esquerda cultural contemporânea a civilização ocidental? Sempre bem infiltrada nos círculos de “intelectuais”, “jornalistas”, “comentadores” e todos os demais que lançam as “grandes” questões do debate público, como caracteriza essa nova esquerda “modernaça” a nossa própria civilização, não por acaso aquela primeira da História que acabou com a escravatura? Ora, paradoxalmente precisamente como esclavagista e opressora.
E como descrevem esses farolins do futuro mundo novo essa mesma civilização que, de forma igualmente pioneira, emancipou as mulheres, igualizando direitos entre os dois sexos e abrindo as portas a todas as funções na sociedade para toda a gente? Naturalmente, como patriarcal e opressiva para as mulheres. Pior, consegue ainda essa esquerda visionária a proeza de, ao mesmíssimo tempo que desprezam o Ocidente livre e tolerante, embevecer-se perante o relativismo cultural que desculpa de forma igualitária todas as culturas e civilizações — exceptuando a nossa e incluindo aquelas que nem sequer consagram igualdade de direitos a ambos os sexos. Um feito intelectual, há que reconhecer.
E como classificam esses arautos das virtudes “politicamente correctas” a primeira civilização que abriu também todas as posições sociais a todas as raças, garantindo a igualdade de todos perante a lei? Pois muito bem, com a coerência que se lhes reconhece, berram os iluminados que tal civilização é intrinsecamente racista e xenófoba.
E como descrevem essas mesmas luminárias a civilização que — e continuamos a falar da ocidental —, descriminalizou e legalizou a homossexualidade, deixando de perseguir pessoas em função da sua orientação sexual, inclusive igualizando direitos entre casais independentemente do seu sexo? Ora, como não poderia deixar de ser, para esses teóricos da felicidade humana tal civilização — a única, já agora, que acabou com a perseguição aos homossexuais — é intrinsecamente homofóbica e castradora de minorias sexuais. Já outras culturas onde a homossexualidade é tratada com a simpatia própria de um apedrejamento ou de uma condenação à morte, isso já não parece causar tanto escândalo social.
Posto isto, para quem não esteja possuído pela hipnose própria do fanatismo ideológico, um padrão emerge: para esta nova esquerda, a nossa tolerância é caracterizada como intolerância enquanto os verdadeiramente intolerantes são convenientemente esquecidos pelos organizadores da revolução cultural — ou seja, falam forte com quem podem criticar e fiam bem fininho com quem não lhes liga nenhuma.
Mas a coisa não se fica por esta evidente hipocrisia. Porque esses “pensadores” apenas identificam na sociedade dois papéis possíveis, precisamente o de vítima e o de opressor, logo se tornam todos aqueles que não pertencem às infinitas minorias decretadas como oprimidas, por definição, de forma automática — e preconceituosa, acrescente-se —, em tenebrosa maioria opressora: és branco? Então, mesmo que não saibas, és racista. És homem? Então esquece lá as educações, os hábitos, as antigas regras sociais, é a tua masculinidade que é tóxica e tu, apenas por seres homem, logo masculino, és machista, opressor e patriarcal. És heterossexual? Não vais descer a rua com bandeirinhas arco-íris a exaltar as virtudes da homossexualidade? Gostarias de teres netos biológicos? Ó pá, então és homofóbico. E assim sucessivamente se repete até à náusea — literal, já — a formulazinha que alimenta esta grotesca narrativa que superficializa a natural complexidade do mundo social num infantil código binário: se não és uma vítima, então só podes ser um opressor.
Do mesmo modo, porque o neo-marxismo que os orienta na sua pretensa superioridade intelectual é sempre uma “revelação” apenas acessível aos eleitos que a “compreendem”, todos os que não aceitem a verdade por eles apregoada — assim ao modo de culto fanático —, sejam esses não-crentes membros das eleitas minorias de vítimas ou não, logo são estes apelidados de burros, tidos como incapazes por não vislumbrarem a realidade tenebrosa em que a civilização mais rica, próspera e pacífica da História de facto vive, ou, pior, gente malévola que até reconhece a essência opressora da sociedade, mas, por pura crueldade, até gosta dela assim.
Aliás, tanto assim é que é precisamente daqui que deriva uma ridícula e pestilenta pseudo-virtude auto-congratulatória que eleva o “activista” denunciador de opressão aos píncaros máximos do orgulho próprio — orgulho, um pecado no mundo que ora acaba, atente-se, mas transformado na tradução anglicana “pride” hoje em dia celebrada anualmente em versão pimba festivaleira —, isto porque, face à lógica binária opressor-oprimido, tal como todos aqueles que não aceitam a nova verdade moral ou são burros ou são maus, então, por conclusão evidente, aqueloutros que a apregoam e cantam só podem mesmo ser inteligentes e bons.
E assim se alimentam aqueles que mais não fazem além de apontar o dedo a qualquer pessoa que queira fazer o quer que seja. De iPhone na mão e All Stars nos pés, de bolsos recheados de notas sacadas aos pais, lá se criam fornadas de “activistas”, essa novíssima “profissão” que dá direito a rodapé televisivo e onde a virtude auto-assumida é inversamente proporcional a qualquer resquício de mérito ou esforço social. Não é preciso fazer algo de novo, um produto ou serviço que alguém queira, ou considere útil. Não, pelo contrário, tanto mais virtuoso um activista é quanto não fizer nada — ai, ai, ai, olha que se fizeres alguma coisa emites carbono —, ou quanto mais destruir aquilo que outros fizeram — para “salvar”, claro, o planeta — ou, na maior parte dos casos, quanto mais se limitar a apontar o telefone reprovador para registar “nas redes”, com escárnio e “indignação”, tudo aquilo que se ouse mexer por regras que suas excelências não considerem adequadas.
Assim, onde ninguém vislumbra uma agressão, logo o “intelectual” descortina uma microagressão. Onde uma família pastoreia a prole, logo o justiceiro social percepciona uma terrível prisão social. Onde um desgraçado come um bife, logo o arauto dos bons costumes descobre um crime hediondo contra a natureza. Onde um incauto assume um interesse num qualquer irrelevante hábito cultural, logo o peçonhento de dedo em riste vem acusar de apropriação cultural — e por aí fora que, para mal dos nossos expiadíssimos pecados, exemplos não faltam.
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