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3 Uma cultura de cancelamento
Sempre que discuti com os meus pares o ataque que estava a ser feito à liberdade académica de pensamento e expressão, ficava surpreendida com o facto de eles não serem sensíveis a um argumento que me parecia totalmente sensato: as regras devem ser feitas a pensar que um dia não estaremos no poder. Trata-se, na verdade, de uma ideia simples: quando defendemos limitações de expressão e práticas de cancelamento, estamos a pôr-nos a jeito de sofrer essas mesmas medidas quando o outro lado está no poder.
Continuo a achar que se trata de um argumento sensato (e, talvez, o melhor argumento para a garantia da liberdade de expressão), mas Haidt permite compreender por que razão o argumento não produzia efeitos: subjugados a uma lógica de moralidade tribal, não eram capazes de pensar fora dela. A sua arrogância moral, misturada com muita arrogância epistemológica, não lhes permitia compreender que as mesmas armas (ou do mesmo tipo) que estavam tão dispostos a usar e a justificar moralmente seriam usadas pelo outro lado, igualmente convicto da sua moralidade.
Após os primeiros meses de 2025 e de mais uma vitória de Trump que foram incapazes de antecipar e, sequer, compreender, é caso para perguntar: não queriam uma cultura de cancelamento? Eis a cultura de cancelamento.
Ela está agora, e como era previsível, a ser usada pelo outro lado. E é este o problema das lutas culturais e da politização de todos os domínios da vida: tudo se torna palco de luta moral e política.
Não deixa de ser surpreendente que tantas pessoas tenham ignorado os avisos de que proteger a liberdade de uma opinião contrária à nossa é, acima de tudo, proteger a nossa liberdade de dizer algo contrário ao poder instalado; que tenham ignorado os avisos de que ocupar instituições públicas, como universidades e serviços públicos, com a sua moralidade levaria a que, invertida a situação de poder, eles fossem alvo de ocupação por parte da moralidade oposta; que o ataque à ciência e às ideias que eles consideravam inaceitáveis teria, como contrarresposta, um ataque à ciência e às ideias que o outro lado acha inaceitáveis.
E não deixa de ser surpreendente que tantas pessoas se escandalizem com o facto de a atual administração norte-americana querer expulsar não-nacionais que professaram “ideias inaceitáveis”, querer controlar a entrada de académicos que pensam “coisas erradas” e querer “reocupar as universidades que usam verbas do estado”. Tudo coisas obviamente negativas, mas não imprevisíveis. Não queriam uma cultura de cancelamento? Eis a cultura de cancelamento.
PS: Porque não é possível compreender os nossos tempos, e sobretudo as medidas da administração Trump, sem compreender o que foi e o que é o wokismo, vou lecionar um curso on-line sobre a sua teoria e a sua prática. Podem encontrar mais informações em pensamentolento.com.